Que título tão estranho, não acham? Nem sequer consigo pensar em não ser teatral enquanto escrevo este post.
No dia 23 de Abril de 2016 estava marcado um jantar de amigos em nossa casa. No menu do dia Caril de frango e seus acompanhamentos. Como sempre faço, para não andar a correr, planeei todo o dia ao pormenor. Só me esqueci de pôr um lembrete para secar os pés ao sair do banho. Não sei como caí nem onde bati, tamanho o choque, só me lembro de pensar “que grande bate-cu”. A minha queda deu direito a 1 semana no Hospital, a 2 meses numa cadeira de rodas e a 1 ano de fisioterapia.
Obviamente que hoje, passado um ano, o caril tinha de ser o protagonista – pernil de porco seria demasiado humor negro. Enquanto decidia e escrevia a pré-receita, colidi com uma história da minha infância, ainda hoje traumatizante para alguns dos intervenientes. Esta história inclui um caril de lulas e muita, muita água.
“Espero que esteja bom, eu não provei” é uma frase que me assusta muito, acreditem. Porque é que as pessoas não provam o que cozinham?
Já vos disse que o meu pai é um excelente cozinheiro, certo? Ele é açordas, feijoadas, cabidelas, é só dizer o que se quer, tudo sai maravilhosamente bem. Para não falar que ele faz tudo descontraidamente, enquanto assobia ou trauteia a mesma música, vezes sem conta, até que alguém grita lá de dentro de um dos quartos: “Oh Pai! Já chega”.
Um dia, há vários anos atrás (20 e muitos, para nos fazer ver quão depressa o tempo passa), o meu pai fez Caril de lulas. Não acho que tenha sido a primeira vez e decerto não foi a última. Porém, graças a ele ter trocado o frasco do Caril pelo frasco do Piripiri, foi a única que ficou na memória.
À mesa éramos 5: eu; o Hugo; a Pat; a Marta e Filipe. Entre muitos goles de água, gargalhadas e choros, o meu pai, que não tinha provado o raio do caril, achava que tanto os filhos como os sobrinhos estavam a fazer fita para não comer. Ainda me lembro da cara dele quanto finalmente provou o Caril! Não há palavras que descrevam tão boa imagem.
O meu Caril de Lulas e Camarão correu o risco de ficar igual ao do meu pai, mas no fim ficou delicioso. Fazer a pasta de caril em casa torna tudo verdadeiramente especial.
Caril de Lulas e Camarão, com arroz basmati
Papadums, chutney de manga & Raita
Ingredientes para a pasta de caril:
1 c. sopa de sementes de coentros
1 c. sopa de curcuma
½ c. sopa de sementes de cominhos
1 c. chá de pimenta preta em grão
½ c. café de malaguetas secas moídas
1 c. café de cardamomo
1 c. café de canela
4 cravos-da-índia
3 dentes de alho
1 c. chá de gengibre fresco ralado
1 c. chá de sal
Azeite q.b.
Preparação:
Leve as especiarias ao lume, numa frigideira, para intensificar os seus aromas (2 minutos serão suficientes para começar a sentir um cheiro mais intenso).
Deite as especiarias num processador (método mais rápido) e triture-as muito bem antes de juntar o sal, o alho e o gengibre. Adicione por fim um pouco de azeite para ajudar a formar uma pasta húmida.
Ingredientes para o caril de lulas:
2 cebolas médias picadas
½ pimento vermelho picado
1kg de lulas limpas
500gr de camarão (cozido previamente, reservando a sua água)
pasta de caril (receita anterior) ou mistura de caril de compra
1 a 2 maçãs reinetas
3 c. sopa de tomate pelado picado
200ml de creme de coco
coentros frescos
1 malagueta fresca
Preparação:
Comece por deitar um pouco de azeite num tacho ou numa frigideira funda. Adicione a cebola e deixe refogar durante 2 ou 3 minutos, juntando depois o pimento.
Enquanto o pimento cozinha um pouco, seque as lulas e corte-as em anéis do mesmo tamanho, para que a cozedura seja uniforme.
Adicione a pasta de caril e as lulas ao refogado, mexendo bem. Descasque e rale as maçãs directamente para o tacho/frigideira e deixe-as derreter, juntando depois o tomate pelado e a água de cozer o camarão (250 a 300ml serão suficientes). Assim que comece a ferver, baixe o lume e deixe cozinhar durante 15 a 20 minutos, mexendo de vez em quando.
Finalmente, junte o creme de coco e o camarão cozido. Verifique os temperos e deixe ferver por 2 ou 3 minutos. Pique coentros e um pouco de malagueta para salpicar, a gosto, quando servir.
Acompanhei o Caril com arroz Basmati (cozido com casca de limão e Cardamomo) e Papadums com chutney de manga e raita, feitos em casa.
Quem diz “o que é doce nunca amargou” nunca queimou caramelo – e nunca se queimou com caramelo!
Ai o meu pai! Lá vem o meu pai outra vez…
Ao Domingo, lá em casa, havia sempre um docinho e eu, gulosa e armada em sous-chef, lá permanecia ao lado do fogão, a mexer ou a provar (e a ouvir as histórias de sempre). Normalmente fazia-se pudim, papas de milho ou arroz doce. Naquele dia o meu pai quis fazer Marrons Glacés e a gulosa da Rita quis provar.
Oh Pai! Se estás a ler isto, por favor diz-me que te lembras da colher de pau presa na minha boca. Não pode ser só fruto da minha imaginação!
Traumas ultrapassados, em 2012 ganhei coragem e fiz pela primeira vez caramelo. Desde então sou muito mais feliz!
Finalizei a refeição de hoje com estas tartes de amêndoa e leite creme oriental (feito com gengibre, cardamomo, cravinho-da-índia e canela), cobertas de amêndoa caramelizada e acompanhadas de colis de morango. Esta receita serve de experiência a um convite/projecto que aí vem, de que vos falarei noutra altura.
As lições que ficam para a vida deviam estar escritas num livro com páginas ilimitadas. O meu acidente serviu-me de lição (tal como as restantes histórias que vos contei) e ensinou-me que ser livre não é fazer o que se quer, é fazer o que se pode. Se não acreditam, experimentem ir fazer compras de cadeira de rodas e vejam os ingredientes que vos saltam à vista.
Obrigada a todos por estarem aqui comigo. Obrigada a todos os que me ajudaram a superar esta fase da minha vida!
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